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quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

:: A Primeira Página ::

"A Primeira Página"
de Billy Wilder

[The Front Page, EUA, 1974]

"Full of wonderful comedic business, throw-away lines and some effortless ensemble set pieces, The Front Page bristles with its collection of talents on both sides of the camera. As is often the case with good comedy, the basic material is darkly dramatic, but the story telling style and the angle of approach to it is pure delight. It's that Billy Wilder touch of hurtful grains of truth inside every comic scene." --- URBAN CINEFILE

"Ao lado da medicina e da prostituição, o jornalismo é a carreira que melhor familiariza a criatura humana com as misérias da sua condição." --- LÊDO IVO


O mestre Billy Wilder já cometeu outros clássicos que rivalizam em hilariedade com este (como Quanto Mais Quente Melhor, O Pecado Mora ao Lado e Se Meu Apartamento Falasse), mas poucos de seus grandes filmes arrancam risadas através dum cinismo tão ácido. Baseado na peça de Hecht e MacArthur, esta história de A Primeira Página já havia sido filmada duas vezes em Hollywood - inclusive por Howard Hawks no clássico Jejum De Amor (His Girl Friday), estrelado por Cary Grant - mas recebeu aqui um tratamento de classe, de resultado delicioso, nas mãos da trupe diabolicamente afiada Wilder-Lemmon-Matthau.

O enforcamento iminente de um suposto agitador comunista é o ponto de partida para uma metralhadora giratória de chacotas que não poupa ninguém, desde a puta até o governador, mas cujo alvo maior é a imprensa. Numa press room demencial, regada à bourbon e pôquer, já com os tíquetes para a execução nos bolsos, os jornalistas se bicam por um "furo" enquanto o mundo pega fogo com a fuga imprevista do condenado (que, segredinho de alguns, está bem ali, escondido na escrivaninha...).

São tempos noiados na América dos anos 20 (mas que já soa como aquela da Guerra Fria): a caça às bruxas comunistas, devoradoras de criancinhas, ganha ares de cruzada. Os "tigres bolcheviques" estão "saindo do esgoto como ratos, subindo pelos mastros, para devorar nossa star spangled banner", diz a patriotada papagaiada pelo xerife. E nada melhor para faturar uns votos, às beiras da eleição, do que um bom espetáculo sinistro onde quebra-se exemplarmente o pescoço de um "vermelho"!

Todas as autoridades responsáveis pelo caso são sistematicamente ridicularizadas: o xerife otário que empresta sua arma para a pessoa errada e com isso permite que o prisioneiro escape; a polícia, que vaga como barata tonta pelas ruas perseguindo freiras inocentes e dando tiros em zeladores cegos; o prefeito filho-da-puta que ignora o documento que oferece clemência ao réu e manda o mensageiro do governador pra zona; o jornalistinha novato que mija nas calças ao primeiro tiroteio, molhando o precioso filme fotográfico; sem falar naquele alienista, mais lunático que o prisioneiro cuja sanidade mental ele tem a função de averiguar...

Mas o ápice cômico fica a cargo da genial duplinha Jack Lemmon e Walter Matthau --- que juntos tem um potencial para nos fazer cascar o bico que rivaliza fácil com o de Chaplin, Keaton, Allen ou quaisquer outros grandes comediantes da história do cinema. Eles vivem aqui uma relação de amor-e-ódio entre o editor-chefe metido-a-todo-poderoso Burns (Matthau) e seu jornalista predileto Hildy (Lemmon). O problema é que este último pretende casar-se com uma pianista (uma adorável Susan Sarandon em começo de carreira) e se mandar pra Filadélfia, deixando órfão seu pobre editor.

Mas o desquite profissional não será tão fácil. Aqueles dois, apesar de se bicarem o tempo todo, possuem uma relação de mútua dependência como se fossem... marido e mulher. E Burns não vai conceder fácil o divórcio a seu mais lucrativo súdito. Para impedi-lo de vazar, vai realizar sucessivos atentados contra o noivado. Isso inclui fingir-se de agente penitenciário, visitando a noiva para informá-la que seu pombinho, preso anos atrás por comportamento obsceno e atentado ao pudor, não pode deixar o Estado por estar sob liberdade condicional. Tudo lorota, é claro. Inclui também o nobre conselho: "Case-se com contrabandista, case-se com um dealer de cassino, case-se com um trombadinha, mas nunca se case com um jornalista!"


O editor Burns tem lá suas semelhanças com o Mr. Burns de Springfield, nos levando a suspeitar que Matt Groening tenha pescado em Wilder alguma inspiração para a criação dos Simpsons. Ele é ranzinza, ganancioso, sem escrúpulos e louco pra ter um pau-mandado puxa-saco que siga todas suas ordens feito um Smithers. Quando, por sorte, vê-se na posse do foragido, quer gabar-se do feito em seu jornal, sagrando-se como salvador da pátria.

Quando Hildy relega o elogio ao heroísmo do jornal para o segundo parágrafo, Burns esbraveja que passou anos ensinando-o como escrever um lead --- e demonstrando plena consciência das atitudes de grande parte do público leitor, pergunta: "Who the hell is gonna read the second paragraph?" Julgando tudo pelo potencial de venda, diz não dar a mínima pro terremoto na Guatemala ("I don't care if there is a 100.000 dead!"), mas que é melhor manter aquela matéria bonitinhas sobre pinguins ("É de interesse humano").

Já seu mascote editorial Hildy, que entra em transe frente à máquina de escrever a ponto de esquecer seu iminente casamento, mostrando-se mais apaixonado pelo "furo" que caiu em seu colo do que pela bela loira que o espera no táxi com passagens para a Filadélfia, oscila entre o ódio e a paixão pelo jornalismo. Por um lado, sabe que trabalha-se até a exaustão para produzir um jornal que, no dia seguinte à sua publicação, será usado para embrulhar o peixe (ou coisa pior: o cocô do cachorro). Por outro, é viciado neste jogo, bem mais excitante que pôquer, de competir com os outros jornalistas pela manchete mais bombástica e as declarações mais arrebatadoras. "I'm beggining to think all newspaper-men have a disease", comenta a noiva, antes de deixar a sala de imprensa como se saísse do manicômio...

O filme ainda traz algumas das mais hilárias piadas-de-psicanálise, tão caras a Woody Allen, que o cinema já nos presenteou. Quando Earl Williams é entrevistado para que sua "sanidade" seja atestada, e ele possa ser enforcado sem neuras, nos deparamos com um psicanalista lunático, feito um mau discípulo de Freud, cuja ortodoxia o leva a crer no Complexo de Édipo como se fosse a verdade sagrada.

Quando o réu declara "tive uma infância perfeitamente normal", o médico rebate com sua "opinião científica": "á-há! Você queria matar o seu pai e transar com a sua mãe!" Logo em seguida, na "reconstituição do crime", sugere que o policial, quando puxou a arma (que é "obviamente" um símbolo fálico), lembrou o réu de seu pai --- e por isso foi atacado e morto. O simplismo grotesco destas interpretações serve como uma implícita zombaria à ortodoxia freudiana - e não à toa Williams se vira para o xerife e comenta sobre o médico: "Ele é maluco!"

É uma das cenas mais hilárias de um filme repleto delas. Quando o psicanalista pede a seu entrevistado que faça exatamente como fez na cena do assassinato, o efeito cômico da pergunta do réu ("Exactly?!") é genial. Não à toa o médico acaba tomando um tiro nos bagos ("nas bolas do amor", como zoa algum dos jornalistas) e volta à Viena para escrever seu livro "A Felicidade Da Impotência".

Tudo por aqui é um grande circo, quase surreal, e não se sabe ao certo se é a imprensa a culpada por criá-lo ou se ela só está lá para registrar um endoidecimento social pré-existente. Wilder e sua turma, lidando com assuntos graves e temáticas espinhudas, utilizam uma ácida ironia como meio de banhar em óleo fervente a estupidez humana em todas as suas formas. Ao invés do aplauso às autoridades, aposta na caçoada sem fim. Aqui, o humor é um método de desmascaramento de vícios, preconceitos e interesses-de-classe que, apesar das hipérboles e caricaturas que utiliza em seu procedimento, possui como fator constante as "hurtful grains of truth inside every comic scene" de que fala a matéria do Urban Cinefile. É o que diferencia uma comédia genial de um pastelão e um grande gênio cômico de um mero palhaço.


EM CARTAZ EM SÃO PAULO NA MOSTRA
"COMÉDIAS CLÁSSICAS" NO CINUSP

Câmpus da USP - Capital
Rua do Anfiteatro, 181 - Colméia - Favo 4
Próximo ao CRUSP e ao Bandeijão Central

Quinta - 21/01 - 19h
Sexta - 22/01 - 16h
Entrada Gratuita

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