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sexta-feira, 30 de abril de 2010

:: Into The Wild ::


NA NATUREZA SELVAGEM


"It is no measure of health to be well adjusted to a profoundly sick society." -- KRISHNAMURTI


[I DESCEND FROM A LONG LINE OF REBELS]

Ah, o doce perfume da rebelião! A tempestade e o ímpeto destes que rompem com as grades de suas celas, ainda que seja a cabeçadas! No cinema, há uma longa série de rebeldes que culminou, nos últimos anos, na figura digna de se tornar mítica de Alex Supertramp. Mas ele teve muitos respeitáveis precursores na arte do Sublime Desrespeito!...

Há o James Dean, em Juventude Transviada, revoltando-se contra seus pais com atos desordeiros e temerários, e orgulhando-se de seu desprezo pela morte frente à carola moderação dos ponderados. Há Marlon Brando, em O Selvagem, chefe da trupe de motoqueiros com jaquetas-de-couro que invadem pequenas cidades para "causar" e que responde, quando lhe perguntam "what are you rebellin' against?", com o clássico "what have you got?!"

Mais pra frente, surgem os dois rock'n'rollers outsiders de Easy Rider, símbolos de outro momento cultural, mas onde prossegue a sensação de que "a América um dia já foi um país danado de bom", como comenta o personagem de Jack Nicholson, mas que tudo foi pro brejo. E agora o que resta é se lançar a jail-breaks em busca do ideal sempre almejado por todos os heróis de road movies: "freedom!"

Se Juventude Transviada e O Selvagem são marcos no retrato do "desajuste juvenil" aos valores vigentes nos anos 50, o clássico de Dennis Hopper fotografa dois cabeludos anti-establishment frutos de outra geração: não exatamente a geração hippie, mas aquela que sobreviveu a ela e viveu sua "ressaca". Easy Rider nos conta as vivências na estrada de dois amigos que atravessaram os anos 60 testemunhando a ebulição do Flower Power, dos Black Panthers e da Guerra do Vietnã (e dos protestos de rua contra ela), sem falar da epidemia da psicodelia turbinada pelo LSD (e que tinha seus gurus em gente como Timothy Leary, Terence McKenna e Ken Kesey), mas que descobrem-se vivendo ainda numa América refratária, intolerante e tristemente sanguinária.


Há ainda casos dignos de menção nos charmosos revoltados de Paul Newman, especialmente em Rebeldia Indomável (Cool Hand Luke, de Stuart Rosenberg, 1967) e Hud - O Indomado (Hud, de Martin Hitt, 1963). Ou no inesquecível levante contra a opressão manicominal em Um Estranho no Ninho (One Flew Over the Cucko's Nest, de Milos Forman, 1975), um dos grandes papéis de Jack Nicholson.

Chegando mais perto de nossos tempos, vale lembrar o histórico rolê-de-motoca pela América Latina empreendida pelo jovem Che Guevara, que Walter Salles registrou com sua costumeira sensibilidade e singeleza em Diários de Motocicleta. E é imprescindível lembrar também do Tyler Durden de Clube da Luta, agressivo e incendiário alter-ego de um funcionário disfuncional da Sociedade de Consumo, que torna-se mentor de um submundo onde o descarrego de violência vai ganhando ares de terrorismo contra os magnatas financeiros e as empresas de cartão de crédito. Sua tese de que "as coisas que você possui acabam por te possuir" poderia ser um mote de Alex Supertramp, o herói de Sean Penn que tanto merece ser o mais novo membro desta longa linhagem de rebeldes!...


[NO LONGER TO BE POISONED BY CIVILIZATION...]

"Feliz, pensava, quem não se prende a nada na terra e passeia um eterno fervor através das constantes mobilidades. Odiava os lares, as famílias, todos os lugares em que o homem pensa encontrar descanso; e as afeições contínuas, e as fidelidades amorosas, e o apego às idéias... dizia que cada novidade deve encontrar-nos sempre disponíveis." ANDRÉ GIDE, Os Frutos da Terra

Into The Wild, quinto filme dirigido por Sean Penn (que assinou também o roteiro), é baseado na história real do jovem Christopher McCandless, "aventureiro americano" biografado por Jon Krakauer. Filho da classe-média alta, aluno brilhante e leitor omnívaro, McCandless, depois de acabar a faculdade, embarcou numa "aventura espiritual" pelos recantos mais selvagens da América. Rompeu radicalmente com a vida burguesa, o mercado de trabalho capitalista, a sociedade de consumo e a família monogâmica. E caiu na estrada, como um sábio vagabundo de Hermann Hesse ou um seguidor de Buda, sem deixar rastros ou mandar cartas, em busca de uma vida mais frugal e ascética, mas repleta de epifanias, encontros humanos genuínos e dolorosos aprendizados.


Em 1992, quando seu cadáver foi encontrado no Alaska, a revista People fez uma reportagem sobre sua vida em que o descrevia como
"a gifted, earnest young man who had been searching for simplicity and spiritual fulfillment in what he had hoped would be the rapturous heart of Mother Nature. He seemed also to be strangely alienated from his former life, ready to cast his fate to the whims of the wilderness. On a board in the bus he had scrawled, 'No phone. No pool. No pets. No cigarettes. Ultimate freedom... No longer to be poisoned by civilization, he flees, and walks alone upon the land to become Lost in the Wild."
Esta "jornada espiritual" que se segue a uma brutal ruptura com a "sociedade" não deixa de ter seus símiles na história religiosa: para ficar em dois exemplos maiores, é só lembrar que o príncipe Siddharta, futuro Buda, abandonou o palácio repleto de conforto e luxo de seu pai, a fim de viver uma vida casta e ascética em busca do Nirvana (Iluminação), e que Cristo também sentiu-se na necessidade de, em certo ponto de seu "percurso espiritual", se exilar no deserto...

Por isto enxergo Chris McCandless, ou sua transposição para o cinema em Alex Supertramp, como uma espécie de Pequeno Buda querendo rasgar as correntes que o prendem à América Capitalista, onde uma realidade social frenética, competitiva, gananciosa e consumista impossiblita qualquer tipo de "espiritualidade autêntica".

Ele poderia ter continuado a fritar batatas no Burger King. Podia ter entrado na Universidade de Harvard, para cursar Direito, "destino" que seus pais considerariam glorioso. Podia ter se tornado um respeitável engravatado, com seus ternos Armani e Rolex no pulso, especulando nos cassinos de Wall Street e divertindo-se ao modo yuppie. Poderia ter aceito o carro novo que o pai lhe oferecia, e que certamente viria mais up-to-date do que sua fatigada carcaça de caranga. Podia ter se enquadrado no sistema e virado um square. The straight life. The american way.


Mas não. Chris sente seu sublime desajuste e sabe que ele está certo. Como diz Krishnamurti: "não é sinal algum de saúde estar-se ajustado a uma sociedade profundamente doente". Chris quer, pois, cortar as amarras que lhe prendem à vidinha convencional, ao caminho que todos trilham, à clicheria nauseante chamada normalidade. O garotinho nota 10, orgulho das professorinhas na escola, depois de se formar na Universidade com o histórico repleto de A's não fará o que se espera dele: adentrar quietinho o mercado de trabalho, faturar com o submisso suor de seu rosto o seu merecido salário, para ir comprar voraz as novas bugigangas à venda...

Doa suas economias - 25 mil dólares - para caridade. Rasga seus cheques e mete a tesoura em seus cartões de crédito. Abandona seu carro no deserto do Arizona. E, munido apesar de seu polegar aventureiro, cai no mundo."Sem telefone, sem piscina e sem bichos de estimação", se manda para a estrada, como a encarnação viva dos ditos rolling stones gather no moss ou wherever I lay my hat, that's my home. "I'm an aesthetic voyager whose home is the road", talha na madeira de seu ermitério, onde centra todas as suas forças em consumar sua "revolução espiritual" --- auxiliado por grandes mestres como Tolstoi, Thoreau, Pasternak, Byron, Emerson e outros "buscadores".

Ele quer viver de pouco, depender de pouco, como um seguidor da ética ascética dentro da sociedade mais consumista, luxuosa e desperdiçante do planeta. "You can't live only on leaves and berries", lhe dizem os cautos. Ele acha que pode.


[UM HORIZONTE SEMPRE CAMBIANTE]
"Tanta gente vive em circunstancias infelizes e, contudo, não toma a iniciativa de mudar sua situação porque está condicionada a uma vida de segurança, conformismo e conservadorismo, tudo isso que parece paz de espírito, mas na realidade nada é mais maléfico para o espírito do homem que um futuro seguro. A coisa mais essencial do espírito vivo de um homem é sua paixão pela aventura. A alegria da vida vem de nossos encontros com novas experiências e, portanto, não há alegria maior que ter um horizonte sempre cambiante. (...) Só temos de ter a coragem de dar as costas para nosso estilo de vida habitual e nos comprometer com um modo de viver não convencional." --- Carta de Chris McCandless a Ron, seu amigo de 81 anos

A certo momento, perguntam a Chris: "What are you running from, kid?" E esta é uma interpretação plausível de seus atos: a de que sejam um mecanismo de fuga bem mais do que uma nobre "spiritual journey". Sua jornada talvez se explique menos pelo "amor à natureza" do que pela repulsa pela família. Ele foge "into the wild" pois sente que suas relações familiares não o levariam a lugar nenhum - só ao convencionalismo insosso, a busca por conforto material e respeitabilidade, as monótonas burguesices cotidianas. É uma rebelião que visa esfregar na cara dos pais sua discórdia intransigente em relação aos valores que eles encarnam.

Ele não quer um carro novo ("why would I want a new car?", pergunta Chris quando lhe oferecem o presentaço, certamente com a esperança de que ele seria recebido com sorrisos largos e cabriolas). E não é somente uma questão de estar sentimentalmente apegado à velha caranga que sua mãe considera uma "sucata" ("junker"). É, me parece, uma crítica que ele faz a esta sociedade de consumo em que pessoas se sentem na necessidade de ter sempre o "Carro do Ano", caso contrário ficam mal na fita com os vizinhos. E é também, creio eu, uma tentativa de lhes dizer que amor não se compra, ou que pelo menos o seu coração não está à venda. Não é nada de "material" o que ele demanda deles!


Pois um dos aspectos mais nefastos da vida numa cultura capitalista-consumista, como é a americana (e, por consequência, também a nossa, já que estamos sob a área de influência do Grande Império e vivemos num Brasil altamente americanizado), é que a mercantilização se disseminou a ponto de emporcalhar grande parte das relações humanas, tornando muitas pessoas incapazes de demonstrar afeto a não ser através do dinheiro.

Se eu quero agradar a meu filho, vou e compro pra ele um carro zero-bala ou aumento sua mesada, ainda que passe o ano inteiro, às vezes toda uma década, sem jamais lhe dar um abraço. Se quero incentivá-lo a passar no vestibular, prometo um PC novo, o que me dispensa de conhecê-lo, apoiá-lo, amá-lo. A recompensa prometida é sempre um sonho de consumo, e assim condiciona-se a nova geração a receber prêmios sempre em bugigangas, nunca em afeto genuíno. E vive-se numa sociedade regida a tal extremo por interesses financeiros e pela "fome pelo ouro", que qualquer pessoa que demonstre outros pendores vira logo um outsider!...

"I don't want anything!", diz Chris aos pais, que aparentemente nem percebem a ênfase que ele põe na palavra "thing" (coisa), o desprezo com que enumera, como se recitando um blá-blá-blá soporífero, "things, things, things...". Se ele se sente atraído pela "natureza selvagem", pois, é por sentir que ali se furtaria à área de influência do Onipresente Capital e escapuliria para lugares onde não está rodeado por gente que vive sob o tenebroso fascínio do vil metal... Ele procura a Natureza Virgem como um modo de escapar da Sociedade da Ganância.

Fucking Greed. Na linda canção de Eddie Vedder, "Society", o cantor do Pearl Jam destaca que, longe de ser uma exceção patológica a ser tratada como uma doença, a ganância tornou-se a regra, socialmente aceita, até mesmo louvada!
"We have a greed to which we have agreed /And you think you have to want more than you need /
Until you have it all you won't be free."

[EDDIE VEDDER, "Society"]
A ganância é uma loucura disseminada no espaço social ("society, you're crazy breed, crazy indeed...") e dá em qualquer ser sensível umas ganas impetuosas de vazar. "Society, hope you're not lonely without me...".

Além disso, Chris fornece um relato desolador de sua vida familiar, como se militasse, como Wilhelm Reich fazia em seu tempo, para solapar as bases de uma instituição social caduca. As tretas conjugais constantes (e violentas) do casal, que os filhos testemunham, lhe dão vontade de voltar no tempo e dizer a eles, no passado, "não se casem! Ela é a mulher errada, ele é o homem errado!" (versos de um poema de Sharon Olds). A falta de diálogo e compreensão, a obsessão com o conforto material e o convencionalismo, o "abismo entre gerações", são outras das causas que ajudam a explicar porque Chris se sentiu tão "asfixiado" com sua família a ponto de "voar do ninho" e se independer radicalmente.

Certos críticos viram nisto um aspecto negativo, como se ter rompido com a família fosse um ato de crueldade e egoísmo. Em sua crítica para o Guardian, Peter Bradshaw adjetiva o personagem como "regressivo", "disfuncional", "teimoso" e "vingativo", sustentando que sua longa viagem é mais uma represália contra os sofrimentos que seus pais lhe infligiram:

"His need to immerse himself in nature, to throw material possessions overboard, stems at least partly from a need to punish his parents for the lies and cruelties he remembers being inflicted on him and his sister as a child. There is something regressive and dysfunctional in McCandless, a fear of human interaction. It is his unhappy fate not merely to entrance the people he meets on the highway with his unaffected charm, but to break their hearts too, by insisting on an enigmatic leave-taking. "You're wrong if you think the joy of life comes from human relationships," is one of the last things McCandless says to Franz."

O Vilaça insiste nisto também, dizendo que Chris está "simplesmente fugindo de seu passado – e seu propósito não declarado (aliás, inconsciente) é encontrar alguma forma de preencher o vazio interior deixado pela relação conturbada com os pais." O fato de sumir sem dar notícia para os pais é considerado pelo crítico do Cinema em Cena como "absolutamente imperdoável".
Sim: é possível que este elemento de "ressentimento" e "vingança" tenha funcionado como um dos vetores que o motivaram; e sem dúvida que o sofrimento que ele causou em seus pais não é negligenciável, como mostram as belas palavras da irmã de Chris quando fala sobre o que se passou com eles quando o "fantasma da perda" amoleceu os corações...

Mas a questão crucial a se perguntar é: Chris não tinha uma boa dose de razão em sua ruptura com a família? Ele é "regressivo" e "disfuncional", como sugere Bradshaw? Ou, pelo contrário, é alguém que quer pegar o leme de sua vida em suas próprias mãos, pensar com a própria cabeça e andar com os próprios pés, sem ser a ovelha submissa e obediente de seus pais? Ele deveria manter-se preso à gaiola familiar por quê, se ali não era feliz, amado ou compreendido? Por mera "fidelidade aos dogmas sociais"?



[OBJECTION, YOUR HONOUR!]

Que haja "objeções" possíveis contra o suposto "heroísmo" de Christopher McCandless, não há dúvida. Morrer de fome, sozinho num ônibus no meio do Alaska, aos 24 anos de idade, sem ninguém te acompanhando durante a agonia, dificilmente parece um "destino invejável". O fim trágico e prematuro desta criatura tão promissora, com tanto ainda a viver, não lançaria uma luz sombria sobre seu percurso, fazendo-o aparecer sob uma coloração mais cinza? É o que muitos comentadores sugerem: que a morte de Chris McCandless no meio da natureza selvagem provaria a ineficácia de seus métodos, a inconsequência temerária de suas escolhas, os resultados terríveis de sua revolta...


"Na Natureza Selvagem é uma estória de uma vida desnecessariamente perdida por um jovem homem que se conscientiza tarde demais de que uma temerária auto-suficiência não é necessariamente o caminho para o auto-conhecimento. Que ele fracasse em perceber isto antes é algo trágico; mas que o filme passe tanto tempo celebrando esta má compreensão é desconcertante", sugere Rossiter Drake, do The Examiner, um dos mais lúcidos dos críticos que "falou mal" do filme.

O mesmo crítico ainda põe em dúvida a "autenticidade da sabedoria" que Chris dissemina em seus conselhos para aqueles que encontra pelo caminho, dizendo que é tudo "emprestado de Tolstoi e Emerson" e que "McCandless, apesar de suas pretensões, é uma criança confusa fugindo de casa, e não Thoreau em Walden Pond."

Já Anthony Quinn, em seu artigo pro The Independent, destaca que, em certo momento, a jornada de Chris, quando ele recusa todos os conselhos e pedidos das pessoas com quem depara para que não parta "para o meio do nada", revela um egoísmo crasso. Ao invés de ficar entre os homens, ainda que seja longe da família, entre hippies, ciganos, poetas, ascetas, folkies, drop-outs e outros sublimes desajustados, ele prefere ir-se para seu frio ermitério, mais preocupado com sua "revolução espiritual individual" do que com laços afetivos que poderiam justificar sua existência. "McCandless's journey suddenly seems no longer a noble quest for purity but a monumental act of egotism", escreve Quinn.

No Times, a crítica Wendy Ide também coloca seriamente em questão as atitudes de Chris e sugere que faltou ao filme de Sean Penn "colocar algumas questões cruciais":
"Although McCandless’s story is undoubtedly fascinating, and Penn’s film contains moments of magic, it is a lesser piece of work because it prefers to accept its subject at face value rather than ask a few crucial questions. Was McCandless following a path to enlightenment or just a quick getaway from responsibility? Was he pursuing a quest for love and happiness, or waging passive aggressive war on his parents? And how can someone who claims to be antimaterialist embark on something that is arguably a luxury reserved for those in the most affluent of societies – the search for oneself? "
São críticas interessantes e válidas, sem dúvida, que compartilho aqui como meio de aprofundar a reflexão sobre o filme e para que evitemos a "pagação de pau" descerebrada, que só sabe louvar sem refletir sobre os nós e espinhos deste destino.


A minha impressão é a de que Chris McCandless conquistou sim uma imensa sabedoria com sua jornada e que seus atos são mais elogiáveis do que repreensíveis, sem dúvida. Aos olhos de alguns, parece ter escolhido o "caminho solitário", "the lonely path", mas este me parece um julgamento superficial. De modo algum sinto que se trata de um "sociopata", de um cara que quer rejeitar completamente as relações humanas, mas sim de alguém que as deseja autênticas, com verdadeiro diálogo e partilha, livres de convencionalismos.

Sua longa jornada faz com que ele adquira muitos amigos e amigas, entre os andarilhos, os ciganos, os hippies, a gente simples do interior, desde um casal de malucões nudistas até um velho militar viúvo e resignado. Prova do valor que ele confere à amizade e à partilha e que torna ridícula qualquer suposição de que ele pudesse ser um "egotista solipsista" ou algo assim. Sem falar que o encontro com Alex Supertramp é, para todos eles, uma rica experiência de vida, que os enche de energia para levantar a bunda da cadeira, e não faltam demonstrações de afeto pelo SuperMendigo que ruma para o Alasca. Só lembrar que ele ganha vários úteis presentes de seus transitórios convivas: uma touca, um par de botas, utensílios de sobrevivência na selva...


Afinal de contas, não estamos diante de um misantropo, que rejeita em massa a raça humana, mas sim de um jovem sensível, com alma de poeta e coração aventureiro, que rompe com os aspectos mais perversos e cruéis da sociedade onde vive em nome de outros valores: o auto-conhecimento, a contemplação da natureza, o conforto de estranhos, o passeio dionisíaco por horizontes cambiantes e correntezas sempre moventes...

Afinal de contas, no ápice de seu percurso, ele adquire plena consciência de que o isolamento não é a solução e que só o amor salva. "Happiness is only real when shared", percebe em epifania, e confesso que considero esta uma das frases mais lindas com que já me deparei nesta vida. A solidão pode trazer sim seus ricos frutos, sem dúvida, e o sorriso radiante que se estampa na face de Chris, na última de suas fotografias, pouco tempo antes de sua morte, é sinal de uma plenitude e de uma sabedoria que raramente um "civilizado" morando numa metrópole-formigueiro é capaz de atingir. Mas a solidão não basta: Zaratustra, enfim, desce da montanha; e um verdadeiro Buda sempre retorna ao convívio dos homens, tornando-se um Bodhissatva. É a epifania, também muito comovente, da Céline de Julie Delpy em "Antes do Amanhecer", na poética cena (que sempre me deixa lacrimejando...), em que ela diz a Jesse: "se existe alguma mágica neste mundo, não está em mim nem em você, mas neste espaço entre nós". Pois se existe neste mundo alguma felicidade real, ela só pode estar na partilha...

Meu amor intenso por este filme está na certeza de que Chris não jornadeou em vão e que seu destino se encontra, no livro de Krakauer, no filme de Sean Penn e nos milhões que já o leram e o assistiram, felizmente partilhado!


4 comentários:

  1. Ótimo post!
    Este filme é mesmo incrível !

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  2. Maravilha de texto! Sou apaixonada por este filme.

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  3. cara eu acabei de acabar de assistir este filme pela 2º vez e ja li o levro tambem ele é incrivel eu nao sei por palavras aki para descrevelo. TOTALMENTE INCRIVEL

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  4. Rossiter Drake deixa a entender com o seu comentário que Sean Penn celebrou demasiadamente o enredo, numa espécie de exaltação heróica, o que eu discordo. Na minha opinião Sean Penn foi muito lúcido em tudo. A apoteose está naquela frase que por sinal, só é dita nos momentos finais do filme: "A felicidade só é real quando compartilhada". Está aí e também no destino trágico a importante consideração para a reflexão que todos temos quando queremos buscar uma vida mais autêntica como Chris buscou. Além de tudo isso quando Penn foca suas lentes naquela última mensagem deixada por Chris, ele não mais assina Supertramp, assina Chris McCandless. Nesta cena é claro para mim que a mensagem incide na constituição do homem como ser social, moldado pela família, pela sociedade, pela linguagem.
    Um abraço, Edu!

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