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sexta-feira, 1 de outubro de 2010

<<< Más notícias vendem melhor. >>>


A MONTANHA DOS SETE ABUTRES
Ace In The Hole. De Billy Wilder. 1951.

"Todo fazedor de jornais deve tributo ao Maligno". 
[La Fontaine]
 
CONFISSÕES INFAMES DE UM JORNALISTA APÓSTATA
ou 
A ARTE ESQUECIDA DE UMA MANCHETE BOMBÁSTICA


Reassistir A Montanha Dos Sete Abutres estes dias me fez refletir sobre uma pá de questões envolvendo o jornalismo que eu não me punha faz anos, de tanto que eu me desvinculei da minha primeira profissão nestes anos em que estive mais "ligado" aos estudos de filosofia (tô prestes a arrematar o curso lá na USP...) e da (hrrrr) "carreira artístico-intelectual" que me aventurei a seguir e que consiste nestes 3 bloguinhos de quem cuido com tanto esmero (como se fossem pets, vira-latas mas mais amados que muito poodle escroto de dondoca...) e numa banda de rock'n'roll apunkalhado que tive com alguns de meus melhores amigos nestes últimos anos (e que amei o suficiente para que hoje me arda o desejo, talvez utópico, de poder um dia viver de arte --- existirá algum destino melhor?).
  
Apesar do meu diploma de “comunicador social” que está mofando na gaveta, não sou um jornalista praticante. Sou um desses que se formou uns cinco anos atrás num curso um tanto chumbrega na UNESP, e que desde então entrou numas duas ou três ciladas trâmpicas até decidir aposentar as chuteiras por umas temporadas e permanecer mais um tempo na universidade --- estudando, escrevendo, compondo, criticando, produzindo, criando e, claro, fumando muita maconha. Em suma: tendo tempo para crescer, ampliar horizontes, conhecer melhor as engrenagens da Máquina do Mundo, tendo espaço para cultivar aquilo que o mercado despreza (por exemplo: a sensibilidade estética, a arte de estar aberto ao diálogo fecundo com uma obra de arte, a capacidade de pensar criticamente, a tentativa de compreensão do funcionamento econômico e político das sociedades... dentre outras "coisonas" que o tal do mercado não se interessa em fomentar! Aliás, que bicho mais quadradão, este puto!...)

Na verdade, hoje acredito que posso ser tão feliz quanto muitos dos meus colegas de profissão que estão galgando degraus nas hierarquias e tomando o Estadão ou a Editora Abril de assalto, apesar de ser um completo zé-ninguém no mercado. Não tenho um só item no meu currículo (nem no jornalístico nem no Lattes), mixuruco que seja, que tenha qualquer "peso", qualquer brilho. Nunca escrevi para nenhuma grande revista ou jornal. No máximo cheguei a ser por um semestre o repórter-chefe (não é tão honroso assim: significa trampar sozinho pra fazer a bagaça inteira!...) de uma revista de circulação interna numa grande multinacional do setor automotivo. Mas por uma merreca duns 700 contos por mês, já que os milão do salário iam embora com gasolina, almoço, médicos... (já que nenhum auxílio de alimentação, saúde e transporte nos era concedido).
  
 
Por estas e outras que, apesar do meu diploma de “comunicador social” que está mofando na gaveta, não sou um jornalista praticante. Sou um desses que se formou uns cinco anos atrás num curso um tanto chumbrega na UNESP, e que desde então entrou numas duas ou três ciladas trâmpicas até decidir aposentar as chuteiras por umas temporadas e permanecer mais um tempo na universidade. Não tenho um só item no meu currículo (nem no jornalístico nem no Lattes), mixuruco que seja, que possua qualquer "peso", qualquer brilho. Nunca escrevi para nenhuma grande revista ou jornal. No máximo cheguei a ser por um semestre o repórter-chefe (não é tão honroso assim: significa trampar sozinho pra fazer a bagaça inteira!...) de uma revista de circulação interna numa grande multinacional do setor automotivo. Mas por uma merreca duns 700 contos por mês, já que os milão do salário iam embora com gasolina, almoço, médico (já que nenhum auxílio de alimentação, saúde e transporte nos era concedido). 
 
Lá resisti por longuíssimos seis meses, tentando não ficar muito deprimido, fazendo um jornalisminho que pra mim era intragável feito um trago de Campari: aquele pseudo-jornalismo, que mais se assemelha a uma campanha de marketing com periodicidade mensal e “disfarçada” de informativo, onde eu me sentia pena de aluguel duma empresa que só queria celebrar seus próprios feitos, fortalecer sua própria imagem, masturbar-se narcisicamente frente ao espelho com seus recordes de produção e projetos premiados, enquanto seguia prometendo proezas novas para seus mais de 20 mil funcionários nos ainda mais doces futuros da caravana encantada do neoliberalismo... 
 


Tudo isso, obviamente, sem que jamais ninguém pusesse minimamente em questão o verdadeiro papel das empresas multinacionais numa realidade global extremamente preocupante com seus 930 milhões de famintos, guerra no Afeganistão e no Iraque, fundamentalismo islâmico apelando para o terrorismo em seu protesto contra a Civilização americana, sem falar na ameaça de uma hecatombe ecológica com o prosseguimento da poluição atmosférica e da imensa produção de lixo industrial nos países "avançados" --- mil êtêcétaras...). 

Sem falar em outro fator, este bem menos geopolítico e bem mais cotidiano, que me fez “surtar” com meu último emprego: a surdez e o autismo do chefe esquentadinho, que malhava não o português (o meu, modéstia às favas, não era nada mau; jamais "bombei" em gramática, ortografia, literatura, redação, Jornalismo Impresso ou Semiótica em toda a minha vida...), mas a má qualidade dos panegíricos comemorativos que eu deveria escrever celebrando a Montadora, este deus no Olimpo estadunidense, como se fosse a Rainha da Cocada Preta (e dos motores 64 válvulas e o caralho...). 

Me embrenhar, um pouquinho que fosse, nas entranhas do capitalismo neoliberal e na mídia que ele fomenta foi o bastante para me deixar muito indignado, puto da vida com isso. Hoje não tenho vergonha de soltar impropérios marxistas que às vezes me soavam panfletários na boca dos poucos professores comunistas que eu tive, mas cuja realidade eu pudecomprovar na prática: grande parte da mídia grande atual produz um jornalismo alienado e alienante, a serviço das classes dominantes, que ajoelha frenta ao imperialismo e promete servi-lo se ele descolar uns dólares... E isso é nojento.

Um pouco por isso eu pulei fora, acreditando que pulando fora do mercado eu teria chances de não ser um peixe fora d'água que morre por falta de oxigênio, mas que poderia inventar alguma via alternativa, quem sabe mais digna. E que hoje está aqui, sendo este pequeno "caco" desempregado na imensidão da Grande Teia, tendo como único bastião a blogosfera, onde vai resistindo bravamente enquanto tenta imaginar algum modo de viver sem precisar se render a um emprego que lhe faça se sentir como um vendido pra máfia, um servidor da burguesia, um puppet do Estado, um disseminador de alienações e ideologias emburrecentes...
 
O que sempre gostei neste clássico de Wilder é a visão ácida, cínica e pessimista do jornalismo que o filme derrama sobre o espectador. O filme, que no princípio mais parece a crônica soturna da carreira decadente de um jornalista alcóolatra e sem muitos escrúpulos (algo no estilo de Farrapo Humano), vai transformando-se numa tragi-comédia carnavalesca e em clima de chacota, para acabar degringolando numa lúgubre tragédia... 

O "mote" narrativo é conhecidíssimo: um homem está preso dentro da montanha depois de um deslizamento. O jornalista vivido por Kirk Douglas, que passava por acaso pela região quando rumava para outra cobertura, vê aí uma oportunidade preciosa para ascender como um foguete na profissão, para longe do fundo-de-poço onde se atolou. 
  
Para justificar porque sente-se digno do posto, aponta para o provável novo chefe: “I'm a pretty good liar”. Já se percebe por aí que todo o “romantismo” já se foi desse jornalista: ele tornou-se um cínico que olha pra baixo para aqueles que ainda se iludem a pensar que o jornalismo “serve à causa da verdade”, considerando isto um sentimentalismo babaca ou algo do tipo. Depois de ter sido mulherengo, beberrão e impulsivo em muitas estações de seu longo percurso de pé-na-bunda em demissão corrida, ele detêm o recorde de ONZE empregos perdidos e agora se encontra feito um vira-lata: sem um troco-furado, pneus já roídos and a very lousy reputation


Se o Bukowski ou o Henry Miller tivessem escrito um romance protagonizado por um jornalista, teriam criado alguém parecido com o Tatum de Kirk Douglas (e que atuação fodaça, caráculas!). O cara é durão, adora um whisky e está louco pra sair do lodaçal que se tornou sua vida. Quando o conhecemos, ele está vendendo seu peixe como Jack Nicholson no início de O Iluminado: aceitando qualquer negócio para poder ter um mínimo de estabilidade e aí tentar superar a  re-ascensão depois da completa decadência... 

Seu “plano diabólico”: recomeçar sua carreira numa cidadezinha interiorana, ainda que o trampo pague a mixaria de uns 40 dólares por semana, enquanto espera que um “furo” lhe caía no colo como uma graça divina. Algo que lhe desse na bandeja uma reportagem formidável, daquelas que o faria retornar ao status daqueles que são recebidos com tapetes vermelhos e salvas de palmas...
  
 Cego por esta ambição, ele se utiliza de métodos duvidosos quando uma oportunidade de "estouro jornalístico" aparece: chantageia o xerife prometendo-lhe fama em troca de privilégios no acesso à "cena" do acontecimento; trata a loura esposa do homem em apuros como se fosse uma atriz a ele subordinada e que deveria interpretar o papel que ele impõe e ordena; e, pior de tudo, convence as autoridades locais a atrasar de propósito o resgate do homem soterrado, para que pudesse escrever não uma reportagem só, mas uma série delas... 

O espectador sente que está diante daquele mesmo Billy Wilder que fez algumas das mais sagazes e finas comédias da história do cinema (O Pecado Mora Ao Lado, Se Meu Apartamento Falasse, Love In The Afternoon, Quanto Mais Quente Melhor, A Primeira Página, todos clássicos!), mas que o humor neste Ace In the Hole não é muito do tipo que arranca gargalhadas. Não que o filme peque por excesso de gravidade (crítica que talvez se aplique muito mais ao Crepúsculo dos Ídolos). A peculiariade aqui é que o humor, em comparação com aquela atmosfera "colorida" dos filmes estrelados por Marilyn Monroe ou Audrey Hepburn, é bem mais sombrio, cáustico, às vezes mórbido.  


 Em uma das cenas chave da obra, o personagem de Kirk Douglas (o jornalista) está enfurecido com a maldita cidade no cu-do-mundo onde nada de bombástico acontece. Ele sugere então à senhorinha que é datilógrafa na redação: “ei velha, você bem podia arranjar um jeito de se envolver num assassinato, não?”. Os mais bem-humorados na platéia talvez caiam na gargalhada com a tirada do espertinho. O problema é que na sequência seu humor deixa de ser tão "simpático" e atinge um cinismo cortante, capaz de chocar, machucar, causar no outro uma ferida. Ele diz para a senhora algo --- “I could do wonders with your dismantled body!” --- que parece atravessar os limites do humorismo e tornar-se um ataque sádico, uma grosseria quase obscena. É algo com potencial cômico, mas a imagem que evoca é tão horrível (a de um jornalista contente feito um canibal com as partes do cadáver de uma velhinha só porque ele agora tem uma excelente reportagem...) que nos sentiríamos culpados se ríssemos.

Se este filme é tão querido pelos professores de jornalismo e por todos aqueles que refletem sobre mídia e comunicação social, é por possibilitar uma vasta reflexão sobre ética. Pois o personagem principal, movido por seu desejo de subir na carreira, deixar o emprego que odeia num jornal paroquial no agrário Sul americano, chega a torcer para que algo de ruim aconteça. "Um incêndio, uma epidemia ou 50 cobras invadindo a cidade... isto tudo seria uma mão-na-roda!", pode-se ouvir o diabinho dentro dele tramando...


Quando um maluco fica preso na montanha, o jornalista fica em êxtase com a sublime possibilidade de construir uma série de reportagens "de interesse humano", cheias de aventura e suspense, com uma pitadinha de superstição (há uma terrível maldição assombrando aquela tumba indígena...), para tudo consumar-se num resgate salvífico e heróico... Sonhos de jornalista. Mas, pelo menos neste filme, o tradicionalíssimo happy end hollywoodiano é chutado para escanteio. Salve, salve, mestre Wilder!


O filme retrata então um snowball effect que vai transformando aquela montanha no meio do nada num verdadeiro point turístico, com barraquinhas vendendo hot-dogs, rodas-gigantes divertindo as crianças e, é claro, um cara lá na porta cobrando entradas. Donde a interpretação mais óbvia e clichezenta: ver A Montanha Dos Sete Abutres como uma metáfora para a desgraça sendo transformada em espetáculo; a catástrofe é transformada em aventura e em drama para vender jornal ou dar audiência, e quando se vê o estrago que se fez.... "Xiiii, Marquinho!"


É esta a crítica mais evidente e escancarada (mas também a mais superficial) que o filme faz contra a mídia: a espetacularização do jornalismo estaria deixando os profissionais cegos a qualquer coisa que não sejam "furos" que darão muitos lucros... Aquele jornalista que Douglas encarna mostra-se absolutamente desleixado com relação à ética, como se não desse  mais à mínima pra isto, como alguém que só tirra sarro da corrupção generalizada da mídia, mas sem demonstrar que pode fazer melhor do que o lixo que ele critica.

E percebe um tanto tarde demais que as irresistíveis consequências de seus atos são terríveis: ele matou um homem. De oportunista espertalhão ele se transforma num homicida "acidental" (ou nem tão acidental assim...). A discussão avança para outra dimensão quando não nos limitados a assistir o filme de Wilder como uma obra que versa sobre um assunto tão impessoal quanto "a natureza de uma profissão" (o jornalismo), e a percebemos como uma crítica social mais vasta que não poupa de suas alfinetadas nem a mídia, nem o xerife, nem os funcionários... A obra me parece tematizar e pôr em questão mais a sociedade em geral do que uma profissão específica, descrevendo as funestas consequências que decorreram deste "grande carnaval da notícia" (o título alternativo do filme, aliás, é The Big Carnival). Uma vida que poderia ter sido facilmente salva não o foi pois o perigo de morte em que aquele homem estava rendia um bom IBOPE. E aquilo que era pra ser somente uma "sessão de cinema light", cheia de risadas leves ofertadas por Wilder, acaba sendo um soco no estômago

De modo que o filme torna-se uma engenhosa descrição, que beira o dostoiévskiano em sua lucidez sombria, narrando como um Raskolnikóv da máquina de escrever é capaz de cometer um assassinato sem nunca disparar um tiro ou esfaquear sua vítima. E o fato deste personagem transformar-se em algo tão grave quanto um assassino talvez se explique pelas idéias que ele nutria --- e que Alexandre Gomes, no Observatório da Imprensa, bem descreve:

"A morte de centenas ou milhares de pessoas, prega Tatum, não tem o mesmo interesse que a morte de uma única pessoa. Neste evangelho do penny press a morte de milhares é apenas um número, enquanto a morte de uma única pessoa tem 'interesse humano', faz com que as pessoas 'tenham interesse em saber tudo sobre ele'." Se me lembro bem, foi Stálin quem disse ago parecido: "a morte de milhares é uma estatística; a morte de um homem é uma tragédia...". Um exemplo claro disto é que o fato de que costuma gerar mais terror e piedade (e audiência...) uma notícia de morte de celebridade (tentem se lembrar como foi quando morreu Kennedy, John Lennon, Airton Senna, Lady Di, Michael Jackson...) do que a notícia de que 1 milhão de pessoas passam fome em tal país da África ou da América Latina. 

Por isto é tão conveniente, como explica Tatum, possuir uma personagem principal, um protagonista, um homem só debaixo do holofote (como Charles Lindbergh cruzando o Atlântico...), do que falar sobre as multidões. O filme de Wilder, aliás, é baseado em fatos reais: "o soterramento de Floyd Collins em 1925, que inaugurou a 'história de fundo humano' como produto da imprensa" (Gomes). A grande questão é: o jornalismo não comete algum “pecado ético” justamente quando pára de falar das massas (das grandes massas!) e passa a querer concentrar-se mais no relato de problemas individuais? E mais: não se perverte ao utilizar-se pessoas como fantoches para a fabricação de uma reportagem altamente vendável? Não é isso um sintoma de estar sucumbindo ao que os marxistas chamariam de “ideologia dominante”? (justamente esta do espetáculo, do sensacionalismo, do individualismo, do star-system, do Mickey Mouse e do McDonalds mancomunados para nos persuadir ao consumo...).

"Se em 1951 Tatum era um caso extremo, hoje ele seria a regra absoluta de um jornalismo que não é só industrial por adotar modernos processos de produção e disciplina fabril, mas também porque não produz informação, e sim mercadoria", termina a matéria do Observatório da Imprensa, e não discordo totalmente. Só acho que falar em "regra absoluta" não tem sentido numa profissão que sempre possuiu (e continuará possuindo!) as "ovelhas negras" que se desviam da ordeira (e perversa) maquinaria do mercado e se aventuram em mar aberto, prontos para a rebeldia e a insubmissão, com a coragem de ainda investir na utopia desgastada de servir mais à verdade do que à bufunfa...
  
p.s.: Acho que Ace In The Hole daria uma ótima continuação como um filme de tribunal (que Billy Wilder infelizmente não teve a idéia de inventar), onde os atos do cara seriam julgados e a problemática ética subjacente ao filme pudesse vir à tona numa discussão aberta, acalorada e polêmica (quem sabe até carnavalesca, obscena, transgressora...). Acho que poderia sair um filmaço uma sequência de A Montanha Dos Sete Abutres que fosse no estilo de um Anatomia de Um Crime (de Otto Preminger) ou de um O Julgamento de Nuremberg (de Stanley Kramer), mas incorporando aí uma pitada do Network - Rede De Intrigas (do Sidney Lumet)! Quem sabe um dia eu arregace as mangas e rascunhe um roteiro...

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