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terça-feira, 4 de janeiro de 2011

<<< Perdidos na Noite (Schlesinger, 1969) >>>


MIDNIGHT COWBOY
de John Schlesinger, 1969.

1969 foi um grande ano para a Cultura, daquela estirpe de rodopios-terrestres-em-torno-do-Sol que fazem a gente se sentir mal por ter nascido... tarde demais. Dá até vontade de compor um blues: "I Was Born Too Late", pra ir de par com "Born Under a Bad Sign"! Pois eu, por exemplo, à luz de 1969 fico a considerar que foi uma tremenda má sorte ter nascido em 1984, um ano que não foi como o imaginou George Orwell, é vero, mas ainda assim tá muito mais pra distópico que pra empolgante (mesmo que Reagan não seja exatamente o Big Brother, aquele topete horroroso me assustava quase tanto quanto o faria a tele-tela!).

1969, para muitos que o viveram, que testemunharam de perto sua  efervescência, e especialmente para aqueles que nasceram depois dele, sob o raio de influência de seu mito, é um ano a se reverenciar. Não de joelhos, que isso não fica bem, mas com o devido respeito. Bendito seja o ano marcado por coisinhas como Woodstock, flower power, Black Panthers, Che Guevara, Abbey Road, Timothy Leary, peace and love, LSD no suco de laranja dos Merry Pranksters e muita distorsão na guitarra (e nas veias) de Jimi Hendrix... Que tempos aqueles!!! Tudo conspirava para a ousadia, para o comunitarismo, para a psicodelia, para o experimento existencial com a consciência, com o outro, com a... vida!

1969 também foi um belo ano para os filmes. Para que tenhamos certeza disso basta assistir Midnight Cowboy - Perdidos Na Noite, clássico do britânico-nativo mas emigrado-para-a-América John Schlensinger. Dustin Hoffman, que tinha despontado alguns aninhos antes com A Primeira Noite de Um Homem, de Mike Nichols, escancara aqui o quanto é um ótimo ator, e tremendamente versátil,  ao encarnar um bandido perneta perdido nas solitárias noites de neón de Nova Yorke...

Mas quem brilha mesmo é Jon Voight, que vive o cowboy Joe Buck, caipirão despencado de pára-quedas na metrópole, direto do Texas, querendo tentar a sorte como hustler, ou seja, o michê que traça as grã-finas da cidade dispostas a pagar por seus serviços sexuais...

Dee Dee Ramone confessou, numa picante história de Mate-me Por Favor!, que fazia coisas semelhantes, ali no cruzamento da 53rd & 3rd, não exatamente por gostar de dar o rabo, mas porque precisava duma grana pro pico diário de heroína... A realidade que Joe Buck encontrará em Nova York não é lá tão diferente desta: o cowboy viverá coisas punk. Não estamos na New York do cartão-postal, mas naquela que Lou Reed já começava a retratar então: repleta de putas, junkies, cafetões, desocupados, vagabundos e mendigos, que dividem o espaço urbano com os poodles das madames e os arranha-céus das multi-nacionais e suas marcas piscando na noite... Penam para sobreviver ao dia muitos dos renegados da cidade, scum of the gutter. E os imensos prédios do Império Financeiro e da Bolsa de Valores observam em silêncio, com indiferença pétrea, os que aos seus pés penam e penam...


Se o Amérika de Kafka e o Dogville de Von Trier são duas das obras-de-arte que melhor fotografam a absurdidade e o sofrimento daqueles forasteiros que sofrem com o American Nightmare, Midnight Cowboy têm o mérito de demonstrar que não é preciso você chegar na América vindo de Praga ou da Prússia, ou seja, lá do cu do mundo, para que sofra as torturas cotidianas que o sistema impõe aos inadaptados a ele, ou àqueles exploráveis por ele. No próprio interior da América há violentas cisões raciais, preconceitos arraigadíssimos, fundamentalisto religioso à rodo, que bastam para que um texano passe pelo diabo em New York, tal como pena um nordestino em São Paulo ou um mexicano depois de cruzar La Migra...

Mas o clássico de Schlensinger não pretende que a política ou o retrato de um cenário cultural tomem o prímeiro plano em relação a algo tido como mais importante: descrever em minúcias a vida concreta de seu protagonista. Este não é um cowboy caricato: a era destas caricaturas unilaterais e maniqueístas estava acabando no cinema americanoo, e prova incontestável disso é que até Charles Bronson tinha sido reconhecido como um ator decente em Era Uma Vez No Oeste, de Sergio Leone, e que em 1969 John Wayne levou o Oscar de Melhor Ator por True Grit, passando a ser cada vez mais amplamente reconhecido como um dos grandes atores americanos, e não só um brutalhão a repetir sempre o mesmo personagem durão e voz grossa que acende o fósforo na sola do sapato e tem o gatilho mais serelepe do Oeste...

Jon Voight-Joe Buck é um sujeito boa-pinta, arrumado, convencido, seguro-de-si, enlouquecedor de damas, simpático com estranhos, sem medo de pôr o pé-na-estrada. É também um homem com um dom para a amizade, e que se amiga não exatamente com facilidade, mas com entrega e confiança.

 Uma espécie de Don Juan do Texas, de saco-cheio de lavar-pratos e ser pau-mandado do chefe numa lanchonetinha escrota do interiorzão carola, e que decide se mandar para a Cidade Grande em busca de, basicamente, ganhar um pão, mas com prazer incluso. Don't we all look for that mix? Mas, tal como Karl Rossmann, o garoto de 16 anos que protagoniza o Amérika kafkiano, este Joe Buck é um fruto um tanto verde para a metrópole. E a metrópole tratará de amadurecê-lo, ainda que a duros golpes. No pain, no gain. Não se cresce sem lágrima.

Há também um pouco de outsider neste cowboy: a selva de concreto estranha a presença deste bicho-do-mato. Mas este homenzarrão texano também traz um sopro de vida ao formigueiro urbano endoidecido, saturado de fanatismos, depressões e frágeis vínculos afetivos... Joe Buck não é só ensinado pela metrópole; ele ensina a ela um pouco daquilo de que ela tinha se esquecido. Pois civilizações podem cair vítimas de amnésia. E por vezes as pessoas mais imprevistas, vindas das latitudes mais estranhas, é que vêm para insuflar vida e humanidade a lugares onde ambas estavam dormentes e semi-esquecidas.

John Schlesinger, diretor de Perdidos na Noite (1969).


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