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quinta-feira, 24 de março de 2011

<<< Uma Mulher Sob a Influência (J. Cassavetes, 1974) >>>


"As pessoas só têm charme em sua loucura, eis o que é difícil de ser entendido. O verdadeiro charme das pessoas é aquele em que elas perdem as estribeiras, é quando elas não sabem muito bem em que ponto estão. Se não se captar aquela pequena raiz, o pequeno  grão de loucura da pessoa, não se pode amá-la. (Aliás, todos nós somos um pouco dementes.) Ele pode assustar, mas, quanto a mim, fico feliz de constatar que o ponto de demência de alguém é a fonte de seu charme..."
Gilles Deleuze, "ABCDário"

Não se trata de "glamourizar" a loucura, nem de negar que ela implica cruéis graus de sofrimento, mas de se reconhecer que certo charme emana, sim, destes seres que destoam da norma, rasgam suas máscaras e ousam ser originais em meio à clicheria e à normopatia reinantes. A Mabel que Gena Rowlands encarna de modo tão visceral em A Woman Under The Influence é assim: uma "birutinha" adorável, que conquista o carinho da platéia bem mais que qualquer um da "manada dos normais" (para usar uma expressão de outro maluco-beleza, Sérgio Sampaio).


O clássico de John Cassavetes (1929-1989) transborda empatia no retrato desta mulher afável, carinhosa, espontânea e brincalhona, inadaptada aos entornos sociais repletos de graves engravatados e dondocas peruas embonecadas.

Frisa-se com insistência o quanto Mabel se entende bem com as crianças: ela também é uma. Há algo na espontaneidade e na franqueza dos pimpolhos que a atrai bem mais do que as pomposidades e solenidades dos adultos. Aqueles que a acusam de louca provavelmente o fazem diagnosticando "infantilidade" e "tendências regressivas". De certo modo, ela de fato se recusa a crescer. Ou não acha que maturidade seja sinônimo de gravidade. Nietzsche:  "Maturidade do homem: significa reaver a seriedade que se tinha quando criança ao brincar." (Além do Bem e do Mal, #94).

Mabel vê com boníssimos olhos a alegria em sua forma mais autêntica (a infantil...) e convida todos ao redor para dançar na roda, entrar na brincadeira, vestir fantasias, dançar um balé, encarnar o Cisne de Tchaikovsky num bailado de quintal... Mas os respeitáveis "maduros", com sorrisos enferrujados, que só tem olhos para o próprio umbigo e desaprenderam a arte da jovialidade e da cordialidade, sentem-se desconfortáveis perto de uma mulher que quer brincar de roda, imergir e se esquecer no brinquedo, enquanto os outros obcecam com mercados de trabalho, bolsas de valores e casacos de pele...



Uma famosa tese freudiana sustenta que a vida civilizada exige uma repressão instintiva que os sujeitos sentem como mal-estar. Deste mal-estar na civilização decorria uma espécie de nostalgia da barbárie, uma saudade de um estado sem tantas leis e proibições, onde o desejo pudesse se manifestar em sua espontaneidade ao invés de ser sempre metido detrás de coleiras e correntes. É o que alimenta os sonhos anarquistas, e muitos dos que são taxados como loucos dariam, se pudessem teorizar, ótimos Bakunins. Gosto da idéia suplementar à de Freud (creio que do Marcuse...) de que nem sempre o grau de repressão que vige numa sociedade é necessário para sua conservação: muitas vezes, é pura opressão de uma classe sobre outra, uma sobre-repressão que poderia muito bem ser extinta sem que a civilização desmoronasse. Tudo o que iria desmoronar é uma classe que se sustentava por cima ao manter outra debaixo da sola de seu sapato.

 Mas o que vemos no sensível e cálido retrato de Cassavetes, em um de seus trabalhos mais lindos dirigindo sua então esposa Gena Rowlands, é mais a descrição um destino individual, que não se alça jamais a generalizações e digressões como estas que arrisco aqui. O filme é um legítimo drama doméstico, repleto de pequenas e grandes violências conjugais, que nos apresenta a um casal que jamais conseguiremos apagar da memória, tamanho é o afeto que ele nos conquista. 

O espectador mais sensível pode até se chocar com as cenas de pancadaria doméstica que Cassavetes mostra com tanta crueza. O maridão encarnado por Peter Falk (célebre por encarnar o detetive Columbo na série de TV dos anos 70), não é exatamente um cavalheiro de mil gentilezas. Não é raro que fale com voz autoritária e ditatorial, como na cena em que ordena que a esposa modifique seu comportamento na mesa de jantar. Em várias brigas, desce o tapa na cara de Mabel. Lá pelo fim do filme, o sangue chega a gotejar da mão cortada da esposa ferida. O curioso é que Mabel não pareça odiá-lo por isso. Não corre rumo ao divórcio. Talvez seja um componente masoquista em sua personalidade. Ou talvez ela sinta-se vivendo num mundo em que os corações estão tão enregelados, tão inexpressivos, que goste de sentir os arroubos do marido, ainda que sejam de fúria: é como uma intensa prova de vitalidade emocional.


Mabel, criatura mais dionisíaca que apolínea, mais criança que camelo, mais do êxtase que da resignação, acaba entrando em choque com certos padrões sociais e a escolha que tomam aqueles ao seu redor é apelar para a psiquiatria. Espectadores como eu acham isto uma atitude totalmente desproporcional ao suposto "mal" que a acomete: afinal ela não é nenhum bicho-de-sete-cabeças! Ao invés de se filiar aos pró-hospício, Cassavetes escancara o quanto o pai de Mabel é um monstro de frieza, o quanto a sogra é uma megera histérica, o quanto alguns amigos da família são personalidades "encouraçadas"... Contra o médico, com suas seringas, que quer "domá-la" e arrastá-la para o hospital, ela constrói um escudo, um vade retro satanás. E o que ficou, ao menos para mim, é a imagem de uma Mabel carente de amor, intimidade e entrega, mas que não encontra o que procura em meio aos rostos glaciais daqueles que, por fim, a empurram para o sanatório.

Mas a genialidade do filme se mostra no retorno dela, quando o maridão exorta Mabel a voltar a ser ela mesma, lançar no lixo a polidez e a "boa-educação", permitir-se ser a menininha peralta que sempre havia sido. Talvez porque sinta que a psiquiatria e seu séquito de horrores (eletro-choques e outras simpaticíssimas táticas...) procurou extirpar de Mabel aqueles traços de personalidade que a tornavam única. Tentou-se uma des-individualização forçada: um hospício é uma fábrica de animais de rebanho, que tenta transformar os leões em cordeiros. Mas a mulher amada, quando privada de seu "ponto de demência" de onde emana seu charme, reduzida às máscaras que lhe exigem que vista, impedida de expressar sua individualidade mais íntima, é uma mera sombra em relação àquela criatura flamejante de vida que agia sem as travas do bom-senso. Mas ela retorna, e com ela os afetos inflamados que vigem entre esse casal. Entre a loucura ardente e a normopatia glacial, escolhem a primeira senda. E escolhem bem.


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