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quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

NÃO É PAZ, É MEDO! - Resenha crítica de "O Som ao Redor" (de Kleber Mendonça Filho, 2012)


NÃO É PAZ, É MEDO!

"O mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e que deixamos para trás quando morremos. Transcende a duração de nossa vida tanto no passado quanto no futuro: preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência. É isto o que temos em comum não só com aqueles que vivem conosco, mas também com aqueles que aqui estiveram antes e aqueles que virão depois de nós. Mas esse mundo comum só pode sobreviver ao advento e à partida das gerações na medida em que tem uma presença pública. É o caráter público da esfera pública que é capaz de absorver e dar brilho através dos séculos a tudo o que os homens venham a preservar da ruína natural do tempo. (...) Fluindo na direção da morte, a vida do homem arrastaria consigo, inevitavelmente, todas as coisas humanas para a ruína e a destruição, se não fosse a faculdade humana de interrompê-las e iniciar algo novo, faculdade inerente à ação como perene advertência de que os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para começar." - HANNAH ARENDT em "A Condição Humana"

"Beirando a unanimidade, O Som ao Redor vem recebendo verdadeira consagração crítica", escreveu Eduardo Escorel na Piauí. Se Nelson Rodrigues tinha razão ao dizer que "toda unanimidade é burra", cabe-nos questionar se é justo todo esse oba-oba que vem entronando a estréia em longa metragem do cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho. Será que essa salva de palmas hiperbólica não é um tantinho exagerada? 

Caetano Veloso, por exemplo, sem medo da pagação-de-pau deslavada, incensou-o como "um dos melhores filmes brasileiros desde sempre". Na blogosfera, o influente "Filmes do Chico" elegeu-o como o melhor filme brazuca da última década (2002-2012), enxergando-o como "alegoria do coronelismo histórico nordestino". Já o estudioso da 7ª arte tupiniquim, Jean-Claude Bernardet, celebrou "a volta da luta de classe ao cinema brasileiro" (como se ela não estivesse presentíssima em numerosas produções recentes, como Tropa de Elite, Cidade de Deus, Salve Geral e em tudo que Sergio Bianchi faz... eis uma legítima "volta do que não foi"!). Já o Le Monde Diplomatique compreende o bairro retratado no filme como "síntese do Brasil" com suas "ilhas de luxo em meio ao oceano de favelas".

Leituras válidas, é claro. Mas aqueles que, como eu, foram ao cinema depois de terem lido estas resenhas altamente elogiosas e criaram uma alta expectativa em relação ao filme, talvez se sintam tão decepcionados como me senti com a discrepância entre o esperado e o recebido. Saí de O Som Ao Redor em um estado de espírito bem "brochado" em comparação, por exemplo, com a excitação fervilhante que senti depois de Febre do Rato, do também pernambucano Cláudio Assis. 

Irandhir Santos
Tudo bem: talvez seja mera "questão de gosto", mas o filme de Assis me pareceu bem mais ousado em sua mescla de poesia e política, mais libertário em sua mensagem dionisíaca e desrepressora, mais impactante esteticamente, com uma fotografia mais bela e com um elenco de atuações bem mais vívidas do que o filme um tanto monocórdico e repetitivo de Kléber, que insiste em bater na mesma tecla e dizer a mesma coisa várias vezes. Além do mais, a história de amor entre o poeta febril e sua Eneida é imensamente mais interessante do que o enlace de João e Sofia em O Som ao Redor. Para não falar que o grande Irandhir Santos (que já merece um lugar de honra entre os atores mais talentosos desta geração!), realiza um trabalho que me parece muito mais magnífico em Febre do Rato e Tropa de Elite 2 do que como o segurança particular um tanto caricato que patrulha as ruas em O Som ao Redor


O Kleber Mendonça fez um filme demasiado "microcósmico" em relação à cosmolatria mística desbragada e com acentos trágicos do filme de Cláudio Assis. Com isso quero dizer que O Som ao Redor se limita ao "microcosmos" de uma pequena parcela da sociedade recifense, aquela classe média que ele talvez conheça melhor que qualquer outra classe pois pertence a ela. Cães-de-guarda que latem pelas madrugadas, guardas-noturnos de intenções suspeitas, guarda-costas que os endinheirados querem ter a seu lado para defesa de suas propriedades: estas são as figuras dominantes em O Som ao Redor. Aí está o retrato não de uma sociedade em sua multiplicidade, mas de uma classe em seu auto-enclausuramento - e isto não permite ao espectador uma compreensão mais ampla da realidade social como um todo, mas somente uma imersão no mundinho fechado daqueles que se defendem detrás de fortalezas.

É aí que reside o mérito do filme: na pintura dessa obsessão com a segurança que leva os habitantes a se encerrarem detrás de grades, vigiados por câmeras de vigilância, policiados por milícias privadas que recolhem a grana de porta-em-porta. O filme mostra uma sociedade cindida entre proprietários, que se encerram em seus bunkers privatizados, e alguns desvalidos em posições subalternas - e que o filme não quer nem perder tempo em retratar mais a fundo. 

Sim, é verdade que várias alfinetadas certeiras são dadas na classe média ali retratada: uma senhora, na reunião do condomínio de seu prédio, demanda a demissão do porteiro porque anda recebendo sua Veja fora do plástico. Outra senhora, ao visitar um apartamento acompanhada pelo corretor de imóveis, pede um desconto no preço pois ficou sabendo que uma pessoa se suicidou naquele prédio (tudo é justificativa para pechincha!). Duas moças se estapeiam, selvagens, pois uma descobre que comprou uma TV de 32 polegadas e a outra pôde bancar uma de 40. Escancara-se aí o ridículo da mediocridade consumidora  que vive para "concorrer" nas Olimpíadas do Supermercado e a estreiteza de pensamento dos que se informam sobre o mundo lendo este panfleto reacionário escroto que é a Veja. O Som Ao Redor, neste sentido, é um bom retrato de indivíduos atomizados, em concorrência uns com os outros na corrida estúpida do consumismo, que se encerram em seus apês cheios de eletro-domésticos para gozar com a tele-pornografia zapeável pelo controle remoto.

Kleber tece sua teia de ironias sutis em relação ao modo-de-vida de uma classe que aspira ao conforto, mas ao mesmo tempo se auto-enjaula na paranóia. No entanto, esta angústia urbana do sujeito que se encerra em seu mundinho fechado, por medo de uma realidade hostil (algo já explorado nos curtas do diretor, especialmente Enjaulado e Eletrodoméstica), não é exatamente uma temática extremamente original - é só lembrar que o hit do Rappa, "Minha Alma", que estourou Brasil afora, já disse algo de muito semelhante e de modo bem mais sintético: "As grades do condomínio são pra trazer proteção. Mas também trazem a dúvida se é você que 'tá nessa prisão..."



O que me incomoda no filme, por exemplo, é a maneira como a figura do "pobre" surge na tela em suas episódicas e velozes aparições: é o menino negro magricela que se esconde dos seguranças subindo numa árvore, e que depois é espancado por eles como se espanta uma mosca; como ladrão invisível do aparelho-de-som e quebrador de vidros de proteção; como vulto negro se esgueirando para fora da casa que está assaltando; como lavador de caranga importada que se vinga da perua endinheirada ao riscar a pintura do carro... Que ocorrências semelhantes aconteçam de fato nas nossas grandes cidades, não tenho dúvida. Mas O Som ao Redor faz algo além de re-utilizar a mesma imagem estereotipada que as classes proprietárias tem das classes "inferiores"? Onde está o hip hop e o grafite, a poesia marginal e os filhos do mangue beat? Onde está o retrato da vida real nas favelas, o esforço de enxergar a humanidade em cada uma das pessoas que vivem em barracos e não em condomínios fechados?  

Se alguns podem enxergar nesta microscopia um mérito do filme, eu enxergaria antes uma insuficiência: o filme de Kleber, ao centrar quase toda sua atenção no microcosmos da classe média, parece não ter muito a nos dizer sobre a humanidade e a complexidade destas classes despossuídas que suas lentes não se preocupam muito em focalizar de modo penetrante e que ele retrata através dos olhos da classe que os segrega e que os enxerga preconceituosamente como um bando de ladrões e depredadores. O contraste é gigante quando o comparamos com uma obra como Ônibus 174, de José Padilha, que realiza um retrato psicológico profundo e penetrante de seu personagem principal, que não acha desperdício de tempo consagrar duas horas à compreensão do destino pessoal de um menino-de-rua, sobrevivente do massacre da Candelária, e que acaba sendo uma obra-prima do documentário nacional justamente por mostrar toda a complexidade deste ser humano relegado à invisibilidade criada pela névoa do preconceito.

Em O Som ao Redor, "o condomínio fechado é mostrado como a versão contemporânea do feudalismo, em que empregadas e porteiros são objetificados", avalia Ismail Xavier, crítico de cinema e professor da USP. Respeito muito a grande perspicácia de um dos nossos maiores "pensadores do cinema", que enxerga em O Som ao Redor toda essa riqueza semântica que, muito provavelmente, "passa batido" pelo grande público. Mas me parece exagerado fazer do filme uma "síntese do Brasil", uma "alegoria do coronelismo" ou um retrato das sobrevivências do feudalismo. Em matéria de história do Brasil, o filme de Kléber está longe de ser educativo ou esclarecedor, ainda que o prelúdio do filme, que traz fotografias antigas dos engenhos canavieiros de Pernambuco, intentem estabelecer um link entre a realidade presente e o passado colonial. O filme, me parece, passa suas duas horas sem realizar grandes investigações históricas, nem se arrisca a falar sobre o futuro; concentra-se na crônica do presente de uma classe específica, sem a mínima pretensão de realizar uma grande síntese histórica como alguns intérpretes lhe atribuem. Estes são significados que os intérpretes retiram de um filme que, talvez sem ter sonhado com todo o hype que gerou, contenta-se em retratar um triste microcosmos de classe que está muito longe de dar conta de descrever a complexidade e a multiplicidade do Brasil.

Nosso olhar, por todo o filme, fica restrito ao mundo privado: tanto o mundo público quanto o mundo natural somem de vista. A maioria dos personagens, apesar de viverem em uma cidade litorânea como o Recife, a poucos metros do mar, não o enxergam: o concreto dos muros e dos arranha-céus obstaculiza a paisagem que poderia se abrir para a imensidão. As águas só são mostradas em poucas cenas, e uma placa avisa os banhistas sobre o perigo de ataque de tubarões. Tudo em O Som ao Redor retrata a clausura do medo daqueles que se encerram no privado e não enxergam o Mundo como o descreve Hannah Arendt: aquele que adentramos ao nascer e aquele que deixaremos ao morrer, aquele que engloba todas as classes e que contêm todas as grades e todas as jaulas, o mundo público cujo eclipse o filme pinta com insistência.

Mas pintar o medo não nos dá pistas sobre como superá-lo - e nem uma sombra de transformação social, muito menos de revolução, ousa levantar a cabeça por aqui. Até a vingança é privada num microcosmos onde tudo foi reduzido à estreiteza de uma privatização  excessiva e que acarreta a ceguiera à imensidão. O Som ao Redor retrata os vários sintomas do apagamento do mundo comum e de nossa faculdade de ação sobre ele: enjaulados em bunkers de alta-tecnologia, protegidos por guardas armados que o dinheiro compra, viciados num conforto que segrega até mesmo o conhecimento da miséria alheia, estes personagens se esqueceram de que "os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para começar." (Hannah Arendt)



Alguns curtas do diretor:

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